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Publicado em: 27/04/2006
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Pesquisa revela o que pensam juízes sobre direitos humanos

Vilma Homero

 

A magistratura fluminense está ficando mais jovem, mas nem por isso parece mais aberta a discutir certos temas. Um deles é o de direitos humanos. Embora sensibilize boa parte dos juízes do Rio de Janeiro, a questão, que sempre foi polêmica, não os leva a apoiar suas sentenças com base nos tratados internacionais sobre o assunto, como descobriu José Ricardo Cunha, doutor em Direito, na pesquisa que está empreendendo para mostrar o que pensam, e como pensam, os juízes do estado.

 

Em Direitos Humanos no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: concepção, aplicação e formação, o professor Cunha, um dos contemplados pelo programa de Direitos Humanos da FAPERJ, organizou o trabalho em duas vertentes: uma teórica, fundamentada em estudos filosóficos, políticos e jurídicos; e outra prática, num levantamento de campo em 225 das 244 varas em funcionamento na Primeira Instância do Tribunal de Justiça do Rio. No questionário elaborado, procurou-se mostrar o grau de formação dos juízes no assunto, em particular seu conhecimento sobre os sistemas internacionais da ONU e OEA, e a aplicação que dão a esse conhecimento na prática dos tribunais. Os dados colhidos foram tratados estatisticamente para a maior exatidão possível dos resultados. 

 

“Nossa pesquisa começou de forma quixotesca. Eu e uma outra coordenadora, que é de Estatística, começamos essa empreitada com alunos da graduação. Assim, os recursos da FAPERJ foram fundamentais porque permitiram não só que pudéssemos pagar ajuda de custo aos nossos estudantes, como para que estendêssemos o trabalho, da Primeira à Segunda Instância, que é o que está sendo feito agora, num primeiro desdobramento da pesquisa”, esclarece o professor, que dá aulas na pós-graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e é coordenador da graduação do Departamento de Direito da Fundação Getúlio Vargas.

 

A idéia nasceu em 2003, ainda nas salas de aula da pós-graduação, em que o professor José Ricardo começou a constatar que muitos de seus alunos, recém-saídos da universidade, já começam a preparar-se para prestar concurso para juízes. Vários são aprovados, o que tem contribuído para mudar o atual perfil etário da magistratura. Hoje, em vez do magistrado com anos no exercício do Direito, é crescente essa face cada vez mais jovem da profissão. Isso, no entanto, não tem significado uma abertura de mentalidade. Integrando uma categoria ainda predominantemente masculina (60%) e conservadora, para boa parte deles, jovens ou não, o Direito ainda se limita à pura codificação das leis. “Isso também se deve ao fato de que o ensino universitário se mantém ‘manualesco’, apegado a decorar o que dizem os manuais. Esse modelo, porém, vem sendo aos poucos superado pelo do profissional que hoje pensa as leis a partir de situações concretas”, diz o professor.

 

Com a equipe de alunos de pós-graduação em campo para entrevistar os titulares das varas criminais e cíveis do estado, logo constatou-se a dificuldade em contar com a colaboração dos magistrados. Para fazê-los responder ao questionário elaborado, em muitos casos foi preciso lançar mão de uma estratégia: assistir às audiências e cercá-los no final. Mesmo assim, o índice de respostas na Primeira Instância foi de apenas 50%, o que José Ricardo atribui ao fato de muitos deles se sentirem desconfortáveis, ou mesmo insondáveis, em dizer o que pensam numa pesquisa.

 

Ultrapassado esse primeiro obstáculo, o professor logo descobriria que, quando o assunto é direitos humanos, a situação se mostra contraditória. Entre os juízes, a grande maioria tem concepções arrojadas sobre o assunto e 54,3% deles acreditam que as leis sobre o tema podem ser plenamente aplicáveis. Apesar disso, surpreendentemente, 46% não as aplicam em seus processos. “Não dá para desprezar que há um pensamento ousado. Mas é preciso contrapor que, na prática, eles não estão levando nada disso em conta”, fala o professor.

 

Para José Ricardo Cunha, “a questão é grave se virmos que o juiz é o último guardião da democracia, e que esta se fortalece a partir da noção do respeito aos direitos do homem, tal como ficou estabelecido na declaração da ONU, em 1948. Nesse sentido, o Brasil só concretizará seu projeto democrático quando os direitos humanos alcançarem concretamente o cotidiano dos indivíduos com plena força normativa”, explica. Conceitos que muitos juízes admitem desconhecer em sua amplitude, embora vários deles reconheçam que teriam interesse em conhecer melhor, se lhes fosse possível participar de cursos breves. “Alguns deles argumentam que embora não apliquem os tratados e convenções internacionais, fazem uso do que há de semelhante na legislação nacional”, fala. Mas o argumento é aceito com ressalvas pelo professor, que explica por quê.     

 

Na sua opinião, a rotina intensa de processos a que são submetidos termina lhes diminuindo a capacidade de uma maior reflexão, especialmente sobre temas como esse. “Mas acho que muitos não foram sensibilizados por estas questões.”  O que se mostrou flagrante também nos comentários ouvidos inúmeras vezes durante a pesquisa, de que “direitos humanos eram coisa para vara criminal e não para vara cível” ou ainda “sou um juiz, não assistente social”. Interpretações que deixam evidente que muitos deles ignoram o fato de que direitos humanos incluem diversos aspectos, como a garantia de direitos econômicos e sociais, tais como o acesso a emprego e moradia.

 

Em certos casos há ainda resistência, o que transpareceu, por exemplo, ao se tratar de questões afirmativas. “A isonomia é um dos mais caros princípios da Constituição, baseada nas conquistas da Revolução Francesa, do século XVIII. Ao longo do tempo, porém, observou-se que apenas a lei não garante que todos os indivíduos tenham as mesmas oportunidades de acesso às prerrogativas disponibilizadas pela sociedade”, prossegue Cunha. Como forma de compensar essas desigualdades históricas, criaram-se políticas públicas de incentivo à distribuição de direitos, que de outra forma se tornam inatingíveis a certos grupos discriminados. Enquadram-se aí as mulheres, os deficientes físicos e os negros.

 

Mas mesmo que 66,7% dos magistrados vejam as questões afirmativas como constitucionais, eles também acreditam que seu julgamento não é para a Primeira Instância, e sim para instâncias superiores. E embora não se oponham quanto a quotas para mulheres ou deficientes físicos, a questão muda de figura quanto ao aspecto étnico. “Sempre há questionamentos quando se fala, por exemplo, em quotas para negros nas universidades. Há quem levante o mito da democracia racial brasileira e argumente que se estaria criando uma desigualdade onde já existe igualdade. Ou então dizem que se estaria ferindo o critério do mérito”, critica o professor, que costuma perceber entre seus alunos iguais objeções. 

     

Embora o Brasil tenha sido um dos signatários, em 1968, da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, mesmo quase 40 anos depois, o que a pesquisa registrou está longe disso. Parte do Sistema Especial de Proteção dos Direitos Humanos da ONU visa conferir um tratamento diferenciado a determinados grupos e assim contribuir para a superação de desigualdades e a eliminação das diversas formas de discriminação. Mas essa convenção nunca foi utilizada por 75% da magistratura fluminense, enquanto 15% admitiram que raramente ocorrem a ela. “Esse resultado é especialmente preocupante num país em cujo cotidiano se observam comportamentos racistas. E o Judiciário não pode estar alheio a estas questões”, afirma. Para o pesquisador, recorrer à convenção é usar um poderoso instrumento de combate às diversas formas de manifestação da discriminação.

 

Curiosamente, o tipo de vara, se cível ou criminal, a cor do juiz e sua formação são determinantes no conhecimento e aplicação de direitos humanos. “As varas que mais aplicam as convenções e tratados internacionais são as criminais. A que menos aplica é a de Fazenda Pública, aquela que julga casos contra o Estado, seja ele representado pelo governo estadual ou municipal. Isso porque, tal como os titulares das varas cíveis, esses juízes acreditam que os problemas patrimoniais estão distantes de direitos humanos; não vêem, por exemplo, a questão do direito à moradia”, explica.

 

Quanto à cor, descrita nos questionários segundo a auto-avaliação dos entrevistados e com base nos critérios do IBGE, a pesquisa revelou outra curiosidade: embora a grande maioria dos juízes seja branca, são os que se consideram pardos que proporcionalmente mais conhecem e aplicam os artigos de direitos humanos em suas sentenças. Preocupação que o professor José Ricardo acredita ter sido “conformada ao longo de uma história de exclusão social sofrida por esse grupo. Os poucos e privilegiados que tiveram acesso à universidade e hoje ocupam cargo de juiz agem com consciência crítica e preocupação com as desigualdades sociais. Apesar de minoria no Tribunal de Justiça, mostram uma ação diferenciada, compatível ao entendimento de que as normativas internacionais são grandes aliadas para a garantia da dignidade humana”.

 

Em outra pergunta, “se imputariam pena de privação de liberdade mesmo tendo em vista as condições do sistema carcerário brasileiro”, 62% dos magistrados responderam que sim, quando isso fosse legal; enquanto apenas 33% disseram que só em casos extremos. O mesmo acontece com relação à prática da tortura, penas cruéis e tratamentos degradantes. Apesar de tema de diversos tratados internacionais, como delito passível de repressão e pena, poucos são os juízes (apenas 10%) que aplicam em suas sentenças o que dizem convenções como a da ONU. Um percentual um pouco maior (16%) declarou que raramente as usa, contra 73% que admitiu não recorrer a elas, embora a Constituição brasileira de 1988 as consagre.   

 

Tudo isso está levando Cunha a novos desdobramentos do trabalho. Um deles, já em curso, está ampliando a pesquisa aos desembargadores, que são os titulares da Segunda Instância. Outro será estender essa visão sobre direitos humanos às entidades do movimento social que trabalham o tema. “Queremos descobrir qual a percepção que elas têm do judiciário, saber se recorrem a ele e que tipo de resultados obtêm. Em outras palavras, depois de ver como é o judiciário por dentro, vamos saber como ele é visto de fora.”
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