Roni Filgueiras
“Ai, meu Deus, que saudade da Amélia / Aquilo sim é que era mulher /Às vezes passava fome ao meu lado / E achava bonito não ter o que comer / E quando me via contrariado / Dizia: Meu filho, que se há de fazer”. Nos versos imortalizados por Ataulpho Alves e Mário Lago, a mulher que fazia suspirar os poetas era subserviente ao marido, abnegada, altruísta, quase masoquista. Passados 66 anos do lançamento da canção, o que mudou em relação aos casais de hoje, ou pelo menos nos casais da alta classe média? Quem leva vantagem no casamento? Homens ou mulheres? Eles ainda temem perder a “liberdade” ao juntar os trapinhos? Acham que nunca mais verão a turma ou jogarão a peladinha de quinta-feira à noite? Quem troca as fraldas das crianças em 70% dos casos ainda são elas? Quem joga a toalha e pula fora do ringue da vida conjugal primeiro ainda são elas? Como vivem e o que querem os casais de classe média carioca, afinal? O primeiro desdobramento da pesquisa “O cotidiano do casamento: a difícil e conflitiva divisão de tarefas e responsabilidades entre homens e mulheres” aconteceu no título. Depois de entrevistar um grupo de casais de classe média alta do Rio de Janeiro, o psicólogo social Bernardo Jablonski chegou à curiosa conclusão: “Não há nada de conflitivo nesse cotidiano.”
Rebatizada como “Cotidiano e divisão de tarefas e responsabilidades entre homens e mulheres” a pesquisa evidenciou ainda que a expectativa de que a chegada maciça ao mercado da mão-de-obra feminina, depois da Segunda Guerra Mundial e consolidada nos anos 60 e 70, se reverteria numa maior divisão de tarefas domésticas, morreu na praia. A pesquisa quer analisar aspectos da vida em comum, verificando como a alteração de papéis advindos da emancipação feminina se reflete na organização doméstica. “Queremos averiguar até onde as mudanças de atitudes e idéias acerca do papel feminino se concretizam numa efetiva divisão de tarefas domésticas, se existe ou não a denominada ‘tripla jornada de trabalho da mulher’ e ainda em que medida esta nova realidade vem acrescentando pontos de atrito à vida conjugal”, detalha o pesquisador. “A idéia era de que se a mulher foi trabalhar fora de casa, o homem trabalharia dentro”, teoriza. “A divisão de tarefas do lar não se apresentou como conflitiva na classe média alta. Ou não é o bastante para elas reclamarem. A mulher, curiosamente, sabe o seu lugar”, brinca o psicólogo social da Pontifícia Universidade Católica.
Segundo ele, quase a totalidade dos lares brasileiros mais abastados conta com apoio externo para as tarefas domésticas (diarista, empregada doméstica, folguista, parentes). O universo de entrevistados reunia 16 homens e mulheres, entre 30 e 45 anos, com pelo menos um filho em idade escolar, em que mulher e marido trabalhavam fora. No entanto, a desavença não se instaurava porque existia uma terceira pessoa para arcar com o trabalho em casa. “Existe, sim, uma insatisfação porque há mais liberdade”.
Sobre as vantagens e desvantagens do casamento, para eles permanece a mítica de que o casamento se assemelha a um cárcere privado. “O homem resiste ao casamento temendo perder liberdade”, constata o pesquisador. “No imaginário, ele vai ser enforcado e isso sempre aparece nas festas de despedida de solteiro.” Mas o temor não ultrapassa as barreiras do real. “Na prática, o homem fica mais satisfeito, fica mais feliz e obtém mais liberdade do que as mulheres. Então, é uma questão que impõe: por que, afinal, permanece a mítica?”, provoca Jablonski. Já do lado feminino, não há uma resposta tão unânime. Mas fica evidente que elas se sentem cerceadas quanto à liberdade “para tomar decisões que envolvam a vida profissional” e também citam a “perda de individualidade”.
Mesmo com o nível de independência econômica que as mulheres lograram no final do século XX, a emancipação financeira não se traduziu numa maior liberdade dos antigos paradigmas do feminino: o de dona-de-casa, submissa, rainha do lar. Ou seja, não libertou a mulher dos preconceitos. “Apesar da emancipação, a mulher ainda se sente impelida a se casar e sofre o estigma da solteirice quando esse projeto fracassa”, analisa Jablonski.
O que ficou evidente nas entrevistas é que os casais, mesmo com discursos mais igualitários, acabavam por mimetizar papéis mais tradicionais quando o primeiro filho nascia. Mesmo com a jornada dupla de trabalho, quando executa alguma tarefa em casa o homem ainda se coloca como coadjuvante. “Ele não incorpora a tarefa, age como se aquilo não fosse problema dele. Quando faz é para provar ‘olha como sou legal, vou ao mercado e ao banco para ajudar. Embora se note que os homens relatem uma participação efetiva, na verdade, cotejando as informações prestadas por homens e mulheres, verifica-se que aqueles têm uma função coadjuvante: sua participação é definida pelas mulheres quase sempre como ajuda.” No entanto, Jablonski verifica que há uma tendência maior entre a ala masculina para os cuidados com os filhos. Quanto maiores as crianças, mais constante se torna a companhia dos pais.
“Um significativo conjunto de estudos tem demonstrado que inúmeros aspectos da vida cotidiana parecem continuar imputados à responsabilidade feminina”, defende o pesquisador. “O que resulta curiosa é a ainda aceitação pelas mulheres de uma situação flagrantemente iníqua, em consonância com a idéia do conceito de tradicionalização. Este conceito diz respeito ao fato de homens e mulheres, após se tornarem pais/mães, adotarem posturas mais tradicionais no que tange a seus papéis parentais e em suas divisões de trabalho doméstico, apesar de possíveis atitudes igualitárias anteriores.” Isso acontece, segundo o psicólogo, independentemente de nível cultural-educacional, social e financeiro.
Mas, pelo menos em nível de discurso, os maridos se sentem confortáveis com suas consciências. E muitos se dizem satisfeitos com a divisão. “Os homens referem-se à sua própria participação como mais intensa e relevante do que aquela percebida pelas mulheres. Elas, por sua vez, se vêem fazendo mais do que eles e algumas se ressentem dessa situação manifestando o desejo de dispor mais tempo para si mesmas.” Como se vê, a Amélia, que era mulher de verdade, está cada vez mais viva, e precisando de altas doses de rebeldia, na sociedade brasileira.
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