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Publicado em: 05/11/2009
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Conhecimento auxilia ex-detentos a construir uma nova história

Vinicius Zepeda


 Fotos: Divulgação/Nufep

         
       O antropólogo Mário Miranda Neto (primeiro à esquerda) junto a
        professores e alunos do Ceam que apresentam suas criações

Dentro do presídio Evaristo de Moraes – popularmente conhecido como galpão da Quinta, no bairro de São Cristóvão, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro –, mais especificamente em seu pátio interno, onde semanalmente os presos se reúnem para receber familiares nos dias de visita, tomar sol ou praticar atividades esportivas, está pintada a frase "Conheceis a verdade e a verdade vos libertará" (Jo, 8,32). A afirmação, de caráter religioso, serve também para ilustrar como a busca de conhecimento pela leitura pode representar novas perspectivas para jovens presidiários. Ali, um trabalho desenvolvido desde 2008, sob a coordenação do antropólogo e pesquisador do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (Nufep) da Universidade Federal Fluminense (UFF), Mário Miranda Neto, vem provocando mudanças na forma como internos, semi-internos e jovens em liberdade condicional, todos estudantes do Colégio Estadual Anacleto de Medeiros (Ceam), no interior do espaço prisional, vêm enxergando sua própria condição. Ali, Mário coordena um estudo até então inédito no País: os jovens não apenas são tema da pesquisa, mas, também, os próprios pesquisadores de sua realidade.

O projeto, intitulado "Cerrando saberes, serrando as grades do saber", vem se desenvolvendo por meio do programa Jovens Talentos – parceria entre FAPERJ e o Centro de Ciências do Estado do Rio de Janeiro (Cecierj), que busca despertar o gosto pelas ciências em estudantes de escolas públicas do estado do Rio de Janeiro pela concessão de bolsas de pré-iniciação científica para estágio em universidades e instituições de ciência e tecnologia fluminenses. Atualmente, são oferecidas ao todo oito bolsas Jovens Talentos para os estudantes do Colégio Estadual Anacleto de Medeiros, que funciona no interior do presídio: duas para detentos em regime fechado; quatro para jovens em liberdade condicional; e duas para internos de regime semi-aberto. O projeto conta ainda com uma parceria entre o Nufep/UFF e o Programa de Pós-Graduação em História das Ciências das Técnicas e Epistemologia (PPGHTE), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "Na troca de conhecimentos sobre sociologia, filosofia e direito, incentivo os jovens detentos a refletirem sobre sua própria realidade e, desta forma, a estudarem a situação de quem vive no presídio, ou seja, deles mesmos. Essa troca de conhecimento tem sido fantástica. Eles estão descobrindo que o poder do conhecimento é enorme e pode até libertá-los do estigma que carrega quem passou por uma prisão", afirma Mário. "O projeto inclusive vem representando uma mudança de paradigma, porque rompe com a lógica comum de que trabalho no espaço prisional é apenas braçal. Agora, o trabalho intelectual também vem sendo reconhecido dentro da prisão", acrescenta.

Os ares do presídio têm sido contaminados positivamente pelo envolvimento dos detentos, além de ajudar na organização do ambiente escolar e mobilizar outros alunos que, mesmo sem receber bolsa, resolvem se dedicar ao projeto. Além dos estudos sociológicos desenvolvidos pelos bolsistas, iniciativas no presídio, como a criação de um cineclube e de uma biblioteca, a produção de um jornal e um trabalho sobre as chamadas "engenhocas" da cadeia – como são chamados pelos próprios apenados os artefatos construídos com material reutilizado, copiando objetos de uso doméstico – também vêm sendo criados. São travesseiros com preservativos inflados recobertos por camisas de pano velhas, fornos que utilizam a parte interna de caixas de leite cobertas por alumínio e que aquecem ao serem expostas ao calor, e vários outros objetos que ajudam a diminuir a falta de conforto do presídio. Além disso, o projeto também tem ajudado a reestruturar atividades que já existiam no colégio, como a oficina de teatro e a de aprendizado de frações por meio do preparo de pães.

        
    Entre as chamadas engenhocas da cadeia está o forno
    feito com o alumínio da parte interna das caixas de leite
O antropólogo Mário Miranda Neto, que leciona aulas de sociologia no Ceam, recorda todo o processo de implantação das bolsas e como foi estabelecida uma nova forma de reconhecimento do trabalho no presídio que não se fundamentasse somente na força física. "Para selecionarmos os bolsistas, fizemos uma prova com quase 30 detentos inscritos", recorda. Ex-detento e hoje cumprindo pena em liberdade condicional e trabalhando, S. J., 32 anos, recorda todo o processo e fala sobre o seu objeto de estudo. "No começo, ficamos com medo de retaliação dos nossos colegas detentos. Nós não sabíamos até onde poderíamos chegar. Procuramos trabalhar com responsabilidade, humildade, discrição e sempre mantendo nossas convicções. Desta forma conseguimos vencer a desconfiança com que os outros alunos do colégio e detentos tinham desta novidade, o reconhecimento do trabalho intelectual na prisão", recorda. Pai de três filhos, o ex-detento quase não fez a prova, pois no dia estava deprimido e não queria assistir às aulas. "Mário me convenceu a fazer, fiz e passei. Durante o tempo em que estive preso, como tinha família, tinha dinheiro, e isto dá poder e status na prisão. Cheguei, inclusive, a trabalhar numa cantina do presídio", conta. Hoje, S. J desenvolve um estudo sobre renda e as relações de troca e consumo realizadas dentro do cárcere.

A criação de uma biblioteca no Colégio Estadual Anacleto de Medeiros é outro resultado do projeto. A iniciativa partiu de um dos bolsistas, o detento C. R. "Eu comecei a mandar cartas para vários órgãos públicos pedindo doação de livros. Em dois meses, consegui juntar 200 publicações amontoadas na minha galeria. Então, procuramos organizar uma biblioteca dentro do colégio que nos próprios organizamos, e tomamos conta dos empréstimos para os outros colegas", recorda animado. "Antes do projeto eu estudava, mas não tinha concentração. Depois eu comecei a ler, refletir e questionar. Hoje sonho fazer vestibular para história quando sair daqui", acrescenta.

Já o detento S. J. L., 34 anos, prestes a ganhar a liberdade, já tem planos para o que fazer quando sair do presídio: voltar novamente para lá. Porém, não mais como detento e sim como professor. "Hoje pretendo esquecer os erros do passado e estudar para me formar em ciências sociais. Meu sonho é ser sociólogo e poder voltar aqui como professor, para ensinar aos detentos o meu exemplo de que é possível almejar um futuro melhor e esquecer o passado. Graças ao que aprendi, hoje, posso conversar com qualquer pessoa e não me enrolar. Eu leio, interpreto e me sinto parte da sociedade", afirma. "Enquanto isto não acontece, procuro passar informação para o coletivo, em nosso jornal sobre planejamento familiar, como evitar doenças sexualmente transmissíveis, grupos de risco, entre outros. A maior dificuldade não é levar informação, mas sim manter o nosso grupo unido e de forma em que as pessoas aprendam a respeitar as diferenças e muitas vezes que sua vontade não seja feita, e sim a do coletivo", complementa. Seu colega, o ex-detento L. C. V. D. recorda que o projeto ajudou a construir uma base de pesquisa dentro do presídio. "Agora que estou em liberdade condicional, tenho me reunido três vezes por semana com pesquisadores da UFF. Meu sonho é poder fazer uma faculdade de matemática ou física no futuro", conta.

O "Cerrando saberes" tem chamado a atenção do governo do estado do Rio, que vem reconhecendo e dando respaldo ao trabalho. "Por meio da Secretaria de Administração Penitenciária, o governo passou a aceitar que nosso estudo sirva como forma de redução de pena para aqueles que cumprirem seu trabalho de forma adequada", afirma o sociólogo Mário Miranda Neto. Os bolsistas Jovens Talentos envolvidos no projeto criaram o Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa na Prisão (Niep), que funciona dentro do Colégio Estadual Anacleto de Medeiros e hoje faz parte do organograma da escola, articula as produções de professores e dá suporte a outras atividades inovadoras dali. "Entre as parcerias do Niep esta sua presença no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Administração Institucional de Conflitos – núcleo temático de estudos e projetos de caráter nacional e de excelência na área – desenvolvido em parceria com a FAPERJ e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)", explica Mário. "Além disso, já temos convite para expor as ‘engenhocas da cadeia’ no primeiro semestre de 2010 em vários locais como o Serviço Social do Comércio (Sesc), UFF e o Museu Nacional/UFRJ", conclui Mário.

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