Vinicius Zepeda
Fotos: Divulgação/UFF |
Kant de Lima: "Prática de segurança pública nunca foi escolarizada, explicitada e exposta a críticas." |
A ideia partiu da observação de uma série de cursos de especialização para policiais do Rio de Janeiro entre os anos de 2000 e 2006. Em entrevista para o Boletim da FAPERJ, Roberto Kant de Lima e o colega Lênin Pires, um dos pesquisadores da universidade que ajudaram na elaboração do curso, explicam como será e qual a contribuição que a iniciativa poderá trazer não apenas para a segurança pública – em especial para o aperfeiçoamento das UPPs – mas também para a segurança privada.
Boletim da FAPERJ – Como foi a experiência do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas da Universidade Federal Fluminense (Nufep/UFF) com os cursos de especialização para policiais do Rio de Janeiro? Quais as principais dificuldades e resultados observados?
Roberto Kant de Lima – Os cursos de especialização funcionaram continuamente entre 2000 e 2006, inicialmente com turmas de 50 alunos, entre civis e oficiais superiores da Polícia Militar, reunindo, ao longo do tempo, outros oficiais da PM, delegados e um público civil interessado no tema. Na UFF, um quinto da turma era composto pelo público civil, cuja expectativa era questionar fortemente as instituições oficiais, estimulando debates muito ricos em sala de aula. As dificuldades iniciais diziam respeito ao estranhamento dos policiais com o ambiente acadêmico, o que foi gradativamente sendo superado. E isso se deu porque os policiais, particularmente os militares, estão habituados a ambientes disciplinares. Na universidade, onde o ambiente era orientado academicamente pelas ciências sociais, boa parte dos trabalhos produzia diagnósticos e proposições profundas e extremamente críticas. Como consequência, muitos policiais procuravam retirar seus projetos ou monografias das bibliotecas de suas instituições. Segundo alguns testemunhos, isso era feito para proteger a carreira do policial, pois o trabalho estaria em desacordo com os valores dominantes nas corporações.
Lênin Pires – A conclusão que se chega é evidente: há pouco espaço para a internalização de informações que partam de uma perspectiva crítica sobre as teorias que formam as práticas dessas corporações e seus agentes. Quando os policiais tomam contato com conhecimentos que põem em perspectiva suas ações e valores, ameaçando-lhes a coerência, a tendência é que o sistema de crenças estabelecido se imponha, rejeitando o novo conhecimento.
Boletim da FAPERJ – O que foi observado nestes cursos que levou à criação da graduação em Segurança Pública?
Roberto Kant de Lima – O corporativismo dificulta o surgimento de uma visão crítica de suas atividades. Vale destacar que em nenhuma dessas instituições se aprende formalmente a ser policial, mas sim, a ser militar ou bacharel em direito, respectivamente. Vejamos, por exemplo, a etnografia da Academia de Policia Militar, recentemente publicada pela Editora UFF (EdUFF), de autoria do ex-comandante das UPPs Robson Rodrigues Silva. O aprendizado da prática policial e da segurança pública, portanto, nunca foi escolarizado, explicitado e exposto a críticas. E segundo nosso entendimento, a segurança pública não pode se limitar somente ao trabalho policial.
Boletim da FAPERJ – Qual seria a principal justificativa para a criação de um curso de nível universitário nessa área? Existem projetos similares em outras universidades do país?
Lênin Pires destaca o pioneirismo da iniciativa
Lênin Pires – Há modelos de cursos, em instituições no norte do país, pensados para policiais. Não é o nosso caso. No Nordeste, mais especificamente no Ceará, há uma iniciativa do governo do estado, junto a intelectuais ligados à universidade federal, de criar um centro de formação integrado para agentes de segurança pública que, a princípio, afasta o público civil dessa discussão.
Boletim da FAPERJ – Quantos policiais foram formados ao todo nesta especialização? Por acaso observou-se uma demanda maior do que o número vagas oferecidas?
Roberto Kant de Lima – Considerando todas as edições do curso de especialização na UFF, foram formadas aproximadamente 500 pessoas, entre oficiais da Polícia Militar, delegados de polícia civil e profissionais de outras áreas (jornalistas, advogados, sociólogos, antropólogos, historiadores, entre outros) interessados no tema. Houve um tempo em que a demanda foi tão grande que chegamos a ter três turmas em um ano (150 alunos). Essa demanda se manteve ascendente não só no Rio, mas em todo o país. O que parece ter estimulado a criação da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (Renaesp), vinculada à Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça. Em um certo momento, esta rede chegou a financiar vários cursos, em várias instituições no Rio de Janeiro. No entanto, essa crescente demanda das instituições por cursos de especialização atende a interesses que não têm nada a ver com o curso de bacharelado que acabamos de criar. Os policiais militares ou delegados de polícia que quiserem ascender profissionalmente continuarão tendo que fazer o chamado Curso Superior de Polícia, promovido por suas instituições. Nossa iniciativa atende a outros interesses, que vão além dessa lógica corporativa.
Boletim da FAPERJ – Quanto tempo dura o curso? Os formados estarão habilitados a fazer concurso público para delegado, como hoje estão os bacharelados em Direito?
Roberto Kant de Lima – O curso está previsto para durar oito períodos, ou seja, quatro anos. O cargo de delegado de polícia é uma reserva de mercado para bacharéis de Direito, de acordo com a Constituição Federal. Caso único no mundo, diga-se de passagem. Assim, a resposta a sua pergunta é não.
Boletim da FAPERJ – Qual será o mercado de trabalho para estes universitários. E como é feita a formação desses profissionais atualmente?
Lênin Pires – Nossa graduação forma bacharéis em segurança pública. Os profissionais serão preparados para trabalhar na administração de conflitos em todo o mundo, tornando-se aptos a refletir e estabelecer parâmetros acerca das motivações e da natureza dos conflitos. Isso tem o propósito de apresentar à sociedade um profissional capaz de proporcionar o diálogo interinstitucional entre as mais distintas agências, públicas e privadas, em torno de políticas de prevenção da violência, da mediação dos conflitos e do uso seletivo e progressivo da força. Como se vê, são profissionais que, no momento, não estão disponíveis no mercado para atender às necessidades de assessoramento de governos estaduais e municipais, ou de secretarias específicas que lidam com os temas da segurança pública, defesa civil, ordenamento urbano, transportes, entre vários outros.
Roberto Kant de Lima – Também há um nicho a ser ocupado no setor privado, uma vez que as áreas de segurança patrimonial, até o momento, tendem a recorrer a policiais que não estão preparados para lidar com as especificidades do mundo empresarial, ainda mais em escala globalizada. A segurança dos aeroportos e portos, por exemplo, demanda planejamento e atenção sofisticados, que empreguem alta tecnologia e estejam cada vez mais voltados para prevenir acidentes, conflitos e mesmo delitos.
Boletim da FAPERJ – A política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro, estabelecida atualmente pelo secretário José Mariano Beltrame, tem ganhado destaque nacional e até mesmo mundial com a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Porém, tanto o próprio secretário quanto estudiosos sabem que este projeto só terá sucesso a longo prazo se, após a ocupação policial, estas comunidades se tornarem parte integrada dos bairros onde estão. De que maneira esta graduação poderá contribuir para o aperfeiçoamento da política das UPPs?
Roberto Kant de Lima – Essa é uma pergunta cuja resposta é necessariamente extensa. Evidentemente, os profissionais que se graduarem saberão claramente do que trata uma política pública desse tipo e terão plenas condições de intervir nesse âmbito. O projeto pedagógico do curso, porém, não teve como horizonte se restringir ou mesmo se direcionar para tal diálogo. Do nosso ponto de vista, enquanto as pessoas continuarem sendo tratadas de maneira desigual, inclusive juridicamente, pelos representantes do estado, será muito difícil a adoção de uma política de segurança efetiva, eficiente e eficaz, do ponto de vista da sociedade. Há pesquisas que não são mencionadas por revelarem algo aparentemente impróprio, de acordo com certos interesses. Elas apontam que as populações das favelas submetidas às UPPs não querem uma polícia diferente daquela com que contam as pessoas da chamada "cidade formal", no asfalto. Elas querem a mesma polícia que tem o cidadão de Ipanema, do Flamengo, da Tijuca, ou de qualquer outro bairro. E se você observar bem, é possível identificar nesse momento a existência de três modelos de policiamento ostensivo na cidade: essa que denominei como sendo da "cidade formal"; as chamadas UPPs, em áreas que têm sido consideradas especiais por interesses nem sempre explicitados; e o modelo puramente repressivo, que é criticado pela política das UPPs. Esse último é o mesmo que boa parte da população pobre do Rio de Janeiro, assim como de diferentes áreas da região metropolitana do Rio, conhece há muito tempo. Ele está atuante e, de certa forma, legitimado. Em alguns contextos, inclusive, convive com o fenômeno das milícias, numa espécie de conflito suspenso, pelo menos até o momento em que seja levado para as localidades em que atuam as UPPs. Os profissionais formados em nosso curso, reafirmamos, estarão vinculados e continuamente expostos à produção de novos conhecimentos, atualizados internacionalmente, em especial os gerados no âmbito do Instituto Nacional de Ciência & Tecnologia de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-Ineac) – projeto apoiado pela Capes, CNPq e FAPERJ – e poderão dialogar com as iniciativas das chamadas UPPs sociais, caso sejam contratados com esse propósito. E serão treinados para trabalhar em qualquer lugar do Brasil ou, dependendo das trajetórias que assumirem, do mundo.
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