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Publicado em: 19/04/2018 | Atualizado em: 03/05/2018
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O consumo nosso de cada dia: autoexpressão e pertencimento*

Danielle Kiffer

Everardo Rocha: coordenador de pesquisa
de Comunicação Social da PUC-Rio, estuda há
cerca de 40 anos a Antropologia do Consumo e
da Mídia (Foto: Arquivo Pessoal) 

Você é o que você consome, queira ou não, sendo consumista ou não. Dentro da lógica capitalista, a exemplo da frase dita pelo poeta Paulo Leminski “Repara bem o que eu não digo”, você é até aquilo que deixa de consumir. Quem faz essa afirmação é o antropólogo Everardo Rocha, que há cerca de 40 anos estuda a Antropologia do Consumo e da Mídia. Cientista do Nosso Estado (CNE) da FAPERJ, ele é coordenador de Pesquisa do Departamento de Comunicação Social e professor do programa de pós-graduação em Comunicação, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Em sua trajetória, Rocha já publicou mais de vinte livros, sendo o mais recente O Paraíso do Consumo: Émile Zola, a magia e os grandes magazines, em que explora a força da narrativa do romance O Paraíso das Damas, de Zola, escrito em 1882, e avalia os impactos socioculturais do principal personagem do livro, que é o “grande magazine”, como são chamadas as lojas de departamento na França. Lançado em outubro de 2016, pela Editora Mauad, e escrito por Rocha em parceria com Marina Frid e William Corbo, ambos seus orientandos de doutorado na PUC-Rio, o livro faz uma análise da expansão das lojas de departamento no século XIX e mostra como ocorreu a consolidação do consumo na modernidade. “Os grandes magazines foram, de fato, a virada fundamental que reuniu diversas potencialidades para fazer do consumo um fenômeno central da nossa cultura”, afirma o antropólogo.

De acordo com Rocha, passados mais de um século e meio desde a inauguração do primeiro grande magazine em Paris, diversas características desse modelo de negócio continuam atuantes na cultura de consumo que vivemos hoje. Por exemplo, as lojas de departamentos do século XIX impulsionaram inovações no comércio da época que permanecem no nosso cotidiano, tais como a exposição dos produtos em vitrines, a fixação e exibição de preços em etiquetas, a criação de datas comemorativas e promocionais, a incorporação de feriados religiosos e cívicos ao calendário de compras e a transformação das visitas às lojas em momentos de entretenimento. “Esses empreendimentos contribuíram para dar forma ao sistema de consumo moderno. Criaram espaços de sociabilidade e ciclos que ritualizam as práticas dos consumidores, fomentando datas especiais como o ‘dia das mães’, ‘dia dos namorados’, as liquidações, a Black Friday, e assim por diante”, explica o antropólogo.  Ele lembra ainda que “as atividades de consumo, até mesmo compras corriqueiras, são revestidas de carga simbólica. Expressam afeto, materializam status e hierarquias sociais, estabelecem relacionamentos e a obrigação de reciprocidade”.

Para o antropólogo, tanto as expressões de afeto podem ser moldadas com as práticas de consumo, como também as nossas próprias identidades na sociedade. Segundo Rocha, na vida moderna, as pessoas são identificadas e se reúnem, em larga medida, de acordo com suas práticas de consumo. “Fazemos parte de grupos urbanos que se formam de acordo com gostos, estilos e poder aquisitivo; os bens de consumo podem ser uma ponte ou um muro entre as pessoas. Nossas escolhas e possibilidades de consumo, por exemplo, as marcas de roupas que costumamos usar, o tipo de carro que dirigimos, etc., tanto refletem quanto viabilizam nossas relações sociais”, diz o antropólogo. “Pessoas podem ser classificadas pelas roupas que estão vestindo, pela decoração de suas casas, pelos serviços que contratam, pelas comidas que gostam e pelas viagens que fazem durante as férias."

Quem nunca viu um carro popular com o símbolo do Audi ou da BMW colado à carroceria? Ou roupas e utensílios de moda sendo vendidos com preços bem mais em conta por serem “réplicas”? O porquê disso pode ser resumido a uma só questão: a vontade de pertencer a um nicho social diferente. Não basta ser, é preciso ter, e, se possível, mostrar que tem. Rocha menciona um filme que, na sua opinião,  exemplifica bem essa situação: Amor por contrato. Nele, uma família aparentemente perfeita, os Jones, são bonitos, populares, confiantes e têm uma casa luxuosa e repleta de aparelhos e objetos de ponta, o que provoca a inveja dos vizinhos. E é exatamente isso o que os Jones querem, já que, na verdade, não são uma família, e sim funcionários da empresa que fornece os bens de consumo que exibem em casa. “Esse filme mostra, igualmente, que as distinções, dentro de um segmento social, não são apenas pecuniárias. No filme, mesmo dentro de uma vizinhança que está, praticamente, no mesmo segmento social, existem diferenças no que diz respeito ao consumo.”

Se consumir é importante para ser e se estabelecer na sociedade moderna, dispositivos que tornam isso particularmente evidente são as mídias sociais, que servem como vitrines das vivências e experimentações de cada um. “Nas redes sociais, o ritual é esse: usuários editam a sua própria imagem, de forma mais ou menos consciente, para construir e manter relações naquele ambiente virtual. Em conjunto, as fotos e os status compartilhados devem significar o que, em sociedade, geralmente se considera adequado e interessante. Inclusive, é comum ouvir alguém na ‘vida real’ se queixar do excesso de felicidade que todos parecem exibir ali. Essa aparente perfeição é elaborada através de recorrentes posts de pés descalços na praia, reuniões com família e amigos, festas, infinitas viagens, shows de música, check-in em restaurantes, cinemas, pontos turísticos, aeroportos, e assim por diante. Retratos e selfies existem para o outro e, em certo sentido, todas essas publicações são um prolongamento da ‘vitrinização’ da vida social levada a efeito pelos grandes magazines do século XIX.” 

Em uma passagem do livro O paraíso do consumo, os autores comentam a anedota, que circulou nas mídias sociais recentemente e traduz, com humor, a importância dessas ferramentas de comunicação como produtoras de status: “Estou tentando fazer amigos fora das redes sociais. Saio na rua e vou dizendo para todo mundo o que comi, como me sinto, para onde viajei, o que eu estou fazendo e o que farei mais tarde. Escuto as conversas dos outros e grito: ‘curti’. Até agora já tenho três seguidores: dois policiais e um psiquiatra...”

Analisando o fenômeno do consumo desde a época da inauguração dos primeiros grandes magazines, no século XIX, Rocha afirma que, apesar do avanço tecnológico e da aceleração da globalização, muitos dos rituais e valores de hoje já eram partilhados, de certa maneira, naquela época e até mesmo antes dela. “As técnicas e veículos de comunicação mudaram, mas não certos hábitos, formas de expressão e de relacionamento. Por exemplo, um artigo de um pesquisador de história da arte mostra como, desde o início da modernidade, a pintura de retratos e autorretratos se torna uma prática difundida não só entre monarcas e membros da nobreza, mas também entre os burgueses em ascensão, que, por essa forma de divulgar a si mesmos, queriam demonstrar poder, prestígio e conexões sociais. Em um tempo menos distante, na minha juventude, não havia ainda a Internet, mas podíamos fazer amigos por correspondência, em trocas de cartas, como hoje funcionam as mensagens em redes sociais on-line”, admite o pesquisador.

As diferenças, de acordo com Rocha, estão na diversificação e acentuada ampliação da oferta de bens de consumo. “Na época dos meus pais, você entrava no banho, por exemplo, com uma limitada gama de produtos. Havia o sabonete e pronto. Hoje, há uma diversidade imensa de itens, como xampu e creme condicionador para os cabelos. Sem falar na fragmentação do nosso corpo, principalmente o das mulheres. Agora, há cremes para a área dos olhos, para a testa, para os braços, para as pernas, mãos, para diferentes idades, tipos de pele, cabelo etc.”

Quando perguntado sobre o futuro do nosso consumo, Rocha diz que, como antropólogo, seria inconsequente tentar predizer o que veremos ao longo dos próximos anos: “Apesar da celeridade tecnológica, os processos de mudança cultural são bem mais lentos do que se imagina. Em vários aspectos da cultura, podemos ver mudanças rápidas quando olhamos, por exemplo, as tecnologias ou os conteúdos de um filme ou uma novela. Porém, se olharmos pelo plano da estrutura narrativa dessa novela ou filme, podemos ver a permanência de valores que já estavam em filmes e novelas bem mais antigos. Os conteúdos podem mudar em ritmo muito mais rápido do que os modelos que os sustentam.”

Reportagem originalmente publicada em Rio Pesquisa, Ano XI, Nº 39 (Junho de 2017) 

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