Vilma Homero
Desde a antiguidade o valor benéfico do vinho para a saúde já era conhecido. Mas só no século XX, os pesquisadores começaram a tentar comprovar cientificamente as possíveis propriedades de seu consumo moderado, especialmente sobre doenças coronarianas. O professor Roberto Soares de Moura resolveu ir mais longe e isolar substâncias a partir da uva para colocá-las em cápsulas e transformá-las em medicamento.
Se tudo der certo, o extrato liofilizado das uvas Vitis labrusca e/ou Vitis vinifera, que em laboratório mostrou-se um eficaz anti-hipertensivo, com efeitos antioxidantes e capaz de evitar a agregação plaquetária, poderá estar nas farmácias em 2007 ou 2008. Já patenteado, o extrato atualmente vem sendo transformado em fármaco através da parceria entre a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e um laboratório nacional.
Professor titular do Departamento de Farmacologia da Uerj e recentemente nomeado membro do Conselho Superior da FAPERJ, Roberto Soares de Moura há 10 anos pesquisa os aspectos farmacológicos dos extratos de plantas cultivadas no Brasil, a convite da Central de Medicamentos (CEME). Já desenvolveu diversos trabalhos com diferentes tipos de folhas, frutos e vegetais: testou e patenteou o açaí, outro anti-hipertensivo e analgésico; e fez o mesmo com o guaco, depois de pesquisar suas propriedades contra a asma.
Bem-humorado e também apreciador de um bom vinho, atualmente o professor Roberto Soares de Moura tem sua atenção voltada para os bons efeitos da bebida e da vitis labrusca, a uva mais usada na produção dos vinhos tintos populares nacionais. Partindo de informações epidemiológicas já existentes, ele pôde comprovar em pesquisas pré-clínicas, realizadas com cobaias (roedores e não roedores), o efeito anti-hipertensivo não apenas da bebida, mas também do extrato da casca da uva. Contemplado com uma bolsa do programa Cientistas do Nosso Estado para desenvolver o projeto, o professor está animado com os resultados obtidos até agora.
Afinal, em seu laboratório, ele testou e provou cientificamente conhecimentos de que o homem tem feito uso de forma empírica desde a antiguidade. “A história mostra que o uso medicinal do vinho pelo homem tem sido uma prática de mais de dois mil anos. Importantes civilizações antigas, como os egípcios, os gregos e os romanos, o usavam como um remédio para o corpo e para a alma. Em 1819, o médico irlandês Samuel Black chamava a atenção para a menor incidência de angina do peito entre os franceses”, conta.
No século XX, as pesquisas mostraram que em países em que o consumo da bebida é grande, como França e Itália, o índice de doenças coronárias é bastante reduzido. Até que, na década de 1990, comprovou-se que o vinho tinto tem propriedades antioxidantes, é vasodilatador, inibe a produção de radicais livres e evita a agregação das plaquetas. O que poderia explicar por que num país como a França, apesar do grande consumo de alimentos gordurosos, como queijos, manteigas e cremes, apresenta baixas taxas de doenças do coração. O que os especialistas passaram a chamar de “paradoxo francês”.
Mas, em 1979, ao publicar o primeiro estudo epidemiológico para comprovar os efeitos benéficos do vinho, o pesquisador St. Leger fazia a ressalva: seria um sacrilégio isolar seus elementos, uma vez que o medicamento já existiria em forma altamente palatável o próprio vinho. Mesmo concordando, o professor Soares de Moura decidiu-se pelo sacrilégio. “Foi o estudo de Leger, em 1979, que deu início aos trabalhos posteriores sobre as propriedades do vinho tinto no processo de aterosclerose”, explica.
Para o professor Roberto Moura, a escolha pela uva, em vez do vinho, se deveu à possibilidade de barateamento do produto final. E a opção pela vitis labrusca no caso, a uva Isabel , em vez da vitis vinifera, de origem européia e empregada na elaboração dos vinhos mais finos, foi em função de dois fatores: o fato de a primeira ser largamente usada na produção dos populares vinhos de garrafão no sul do Brasil e por seus significativos efeitos antioxidantes. “Um medicamento desenvolvido a partir do vinho ou da vitis vinifera encareceria o processo”, explica.
Escolhida a uva, o professor preferiu fazer uso da casca. “Os bagos contêm apenas açúcar, o que, embora seja bom para a fermentação do vinho, não interessa à nossa pesquisa. Já cascas e sementes concentram substâncias com propriedades benéficas no caso, polifenóis. Mas a casca, além de facilitar a extração dessas substâncias, obviamente as guarda em maiores quantidades do que as sementes”, explica.
Os resultados da fase pré-clínica da pesquisa, realizada nos laboratórios da UERJ, confirmaram os efeitos positivos do extrato. Na verdade, trata-se de um liofilizado (pó) hidro-alcoólico extraído da casca, que mostrou significativa atuação sobre a hipertensão induzida em ratos. Nas cobaias tratadas com o extrato, a pressão arterial induzida não apresentou a mesma linha ascendente que nos ratos de controle. E uma aplicação do extrato interrompe a subida da pressão, fazendo-a baixar. “Como se sabe, a hipertensão arterial é um importante fator de risco para a doença coronariana”, diz.
O extrato também estimula a produção de óxido nítrico, um hormônio liberado pelas células do endotélio vascular com importantes propriedades cardioprotetoras. Assim, além de suas propriedades anti-hipertensivas, o extrato tem como efeitos indiretos a vasodilatação e a capacidade de evitar a agregação de plaquetas.
O professor Roberto Moura entusiasmou-se ainda com mais um benefício descoberto. “Também testamos, em ratas, os efeitos do extrato sobre a hipertensão durante a gestação, problema cuja origem parece ser a ausência de óxido nítrico. E o extrato as protegeu da pré-eclâmpsia induzida”, conta. E explica os resultados: “Numa gestação, ratas normais costumam gerar aproximadamente dez fetos. Submetidas à pré-eclâmpsia experimental, o número de fetos cai para aproximadamente quatro. Se forem tratadas com o extrato, no entanto, elas voltam a gerar dez fetos, tal como numa gravidez normal.”
O momento é de total expectativa para o professor Roberto Moura e sua equipe. Há outras quatro fases a serem cumpridas para a transformação do extrato em medicamento. Mas a partir de agora, o desenvolvimento desses estágios é feito pelo laboratório interessado em comercializar o medicamento resultante de todo esse processo. Ainda este ano será iniciada a fase 1, de toxicologia humana. Durante três ou quatro meses, em centros credenciados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), voluntários sadios tomam o liofilizado para testar possíveis efeitos adversos.
Na etapa seguinte, também realizada em centros credenciados, o tratamento de um pequeno número de pacientes hipertensos servirá para confirmar se os resultados com cobaias se repetem. Se os resultados forem positivos, passa-se à fase 3, um estudo multicêntrico em que a pesquisa é ampliada para vários hospitais universitários. Novo resultado favorável permite ao laboratório pedir o registro da Anvisa para o medicamento em questão. Mas a fase seguinte, a 4, também é crítica. É quando se confirmará, ou não, em observação mundial, se as propriedades da substância se repetem em larga escala, com a mesma eficácia e segurança.
“Nossa preocupação é que os bons resultados obtidos em laboratório se mostrem inócuos em humanos, ou apresentem alguma toxidade. Mas acho isso pouco provável, uma vez que desde a antiguidade o vinho é usado como bebida e como remédio. E estamos partindo de uma fruta já amplamente consumida, como a uva”, anima-se.
Ele tem motivos para uma expectativa positiva. Hipócrates, o pai da medicina, costumava prescrever vinho como diurético, antitérmico, anti-séptico e auxiliar na convalescença. Durante séculos, a bebida foi também amplamente empregada na limpeza de ferimentos. E não são poucas as referências positivas encontradas tanto nas diferentes religiões quanto na Bíblia. Ele aparece nos milagres de Cristo e é um dos elementos importantes no momento da consagração na missa, para os cristãos; na bênção no início do Sabah judaico, proferida sobre uma taça de vinho que é partilhada pela família; até na descrição do Paraíso, feita pelo profeta Maomé, no Alcorão dos muçulmanos: um lugar onde correm rios de vinho.
Menos literário, e enquanto o extrato não chega às farmácias, o professor Roberto Moura repete as recomendações do Report on Sensible Drinking, do Department of Health inglês, que em 1995 recomendava como benéficas até três taças diárias a pessoas de meia-idade, idosos e mulheres na pós-menopausa. A exceção seria para pessoas com restrições médicas ou religiosas à bebida, e evitando-se, é claro, o abuso ou o consumo indiscriminado. E brinca: “Se o vinho não fosse tão saudável, Deus teria transformado o vinho em água e não água em vinho.”
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