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Publicado em: 21/12/2006
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Delegacias Legais são objeto de pesquisa de antropólogos

Mônica Maia

Segurança Pública, Antropologia Social, Antropologia do Direito e da Política, Teoria Antropológica e Justiça Criminal – essas são algumas linhas do trabalho do antropólogo  Roberto Kant de Lima, coordenador executivo do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas da UFF, e coordenador do Curso de Gestão em Segurança Pública e Justiça Criminal no Estado do Rio de Janeiro e do Curso de Capacitação em Políticas Públicas de Segurança Pública e Social Municipal do Nufep-UFF. Kant orientou as ações de 16 pesquisadores para analisar as práticas policiais desenvolvidas com o programa Delegacia Legal, implantado pela Secretaria Estadual de Segurança Púbica do Rio de Janeiro a partir de 2000, que soma agora 98 unidades em funcionamento, e representa 80% das delegacias do estado.

Por meio do edital da FAPERJ Direitos Humanos e Cidadania: Direitos Humanos para Todos, Kant, advogado formado pela UFRS, PhD em Antropologia pela Universidade de Harvard, com pós-doutorado pela Alabama University, pesquisador 1-A do CNPq e Professor Titular da UFF, concebeu e liderou o projeto intitulado Práticas Policiais, direitos humanos e os processos de construção da cidadania: um estudo sobre o programa de delegacia legal.

O objetivo do estudo foi observação e análise do cotidiano das Delegacias Legais, focalizando o trabalho policial nos diferentes setores das sedes policiais; as percepções do público sobre atendimento policial e sobre as mudanças introduzidas pela reforma policial, assim como a da relação das Delegacias Legais com outras instituições.

As principais características da reforma proposta com instalação das delegacias legais foram: a padronização da arquitetura, orientada pelos princípios de funcionalidade e transparência; o atendimento inicial ao público por profissionais e estudantes universitários não-policiais (com a criação de balcão de atendimento); a gestão de recurso descentralizada por um Grupo Executivo e administrada em cada delegacia por um “síndico” não-policial; a eliminação do lugar do Setor de Investigação e do Cartório e criação do Grupo de Investigação; a responsabilização individual dos procedimentos – ou seja: um policial atende o caso e é responsável pelos desdobramentos posteriores; a informatização e padronização dos serviços policiais e eliminação da carceragem nas delegacias.

Cada grupo de pesquisadores acompanhou a rotina de uma equipe de policiais de uma delegacia, conforme o sistema de plantão, permanecendo nas delegacias por um período aproximado de oito horas por dia. Os pesquisadores fizeram entrevistas formais com os atores vinculados às delegacias onde se realizou o trabalho de campo: delegados titulares, delegados adjuntos, inspetores, atendentes, síndicos e policiais militares, guardas militares  e público em geral.

Eles realizaram também entrevistas informais com delegados, inspetores e policiais militares, alunos do Curso de Especialização em Políticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança Pública do (Nufep/UFF-ISP/SSP) e do Curso de Gestão em Segurança Pública e Justiça Criminal (Nufep/UFF - Secretaria Especial de Direitos Humanos - União Européia). O trabalho de campo nas delegacias, com acompanhamento e observação permitiu analisar o funcionamento da delegacia través do que ela processa, registra e produz, bem como através daquilo que não é registrado.

 De acordo com a proposta do projeto, “(...) essa dupla visão, possibilitada pelo ‘estar lá’ nos diferentes espaços das delegacias, mostrou-se pertinente para observar as vinculações das unidades policiais com outras instituições às quais o público é encaminhado. Isso porque em alguns casos o atendimento na delegacia requer a passagem prévia ou posterior por outras entidades (Instituto Médico Legal para realização do corpo de delito, por exemplo)”.

As transformações das novas delegacias
 
Lenin Pires, doutorando da Pós-Graduação em Antropologia, integrante da equipe de Kant, ressalta que o objetivo foi atuar em regiões metropolitanas de modo a ter acesso ao que é registrado em delegacias das Zonas Norte e Sul, Centro do Rio de Janeiro e Niterói, para obter uma amostragem variada dessas regiões metropolitanas. Com a Delegacia Legal, o registro da ocorrência passou a ser disponibilizado em rede para toda a polícia civil, e não mais em registro datilografado em cada DP.

“Temos a etnografia de Kant da década de 1980 abordando eventos policiais quando o registro da ocorrência era autônomo. Mas com a Delegacia Legal os termos do registro tornam-se padronizados. A polícia passou a ter a noção de que alguém sabe o que está sendo feito em relação aos registros. Essa é a grande mudança”, conta Lenin Pires lembrando que além das transformações propiciadas pela informatização, o primeiro atendimento na Delegacia Legal passou a ser realizado por estagiários com nível superior das áreas de Ciências Sociais, Comunicação Social, Psicolgia, e não por um policial.

O pesquisador também ressaltou a mudança de padrão arquitetônico onde a tônica é a visibilidade: “Em vez de setores separados, a Delegacia Legal tem salas com biombos de onde tudo se vê, quem está fora poder observar através dos vidros. Em vez daquela cor cinza das antigas DPs, a Delegacia Legal exibe uma programação visual mais arejada e colorida”, explicou. Lenin Pires destacou também a mudança do perfil da tiragem – os inspetores de polícia de médio escalão. “Antes só o delegado era ‘doutor’. Hoje na inspetoria tornou-se comum o nível superior, com sociólogos, economistas e psicólogos na tiragem. Vários entraram na carreira pública como opção ao desemprego. Assim muda o enquadramento da polícia civil, muda o conflito interno com diferentes forças em confronto”, diagnostica Lenin.

Sua colega Andrea Ana do Nascimento, especialista em Justiça Criminal e Segurança Pública (UFF) e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Sociologia da UFRJ, analisa reflexos sociais da transformação das velhas DPs acinzentadas, com a população utilizando o espaço das novas delegacias e as mudanças no padrão de atendimento: “Até o fato de ter orelhão numa delegacia é uma mudança. Entra-se agora no espaço da Delegacia Legal para usar o banheiro, para telefonar, por exemplo. Para os que estão nervosos há um atendimento social e psicológico. Muitos não são casos policiais, um bom exemplo disso é o dos mendigos que chegam à delegacia pedindo para ir para um abrigo”, compara.

As críticas à mudança

Lucía Eilbaum, licenciada em Antropologia da Universidade de Buenos Aires, doutoranda em Antropologia da UFF, e integrante da equipe do professor Kant, enumera críticas levantadas nessa investigação sobre o novo modelo de DP implantado: “O sistema de informática, por exemplo, é lento. Há muita reclamação a respeito disso porque o que teria sido criado para agilizar os processos também cria problemas. O sistema de informática cai, sobretudo nas delegacias do interior do estado”, diz a pesquisadora ressaltando que este é um problema criticado pela PM no caso dos flagrantes.

Segundo Lucía outra crítica dos policiais recai sobre o novo formulário de registros de ocorrências: “Foi criado com ênfase no espírito da estatística, e não do trabalho do policial, com um nível de detalhamento que provoca mais demora no atendimento. Uma outra discussão ensejada pelo programa Delegacia Legal é o fato de um único policial receber e tratar do caso do início ao fim. Antes havia o policial do cartório e o policial da rua, o que sempre foi uma referência”, explica a pesquisadora sinalizando uma tradicional divisão do trabalho dos policias nas antigas DPs: o trabalho policial era separado entre “a turma da rua” e a “turma do cartório”.

Fernanda Alves, graduanda em História na UFF, bolsista de Iniciação Científica do CNPq atuou na pesquisa a partir de junho de 2005, em delegacias da Zona Norte: “Desconstruí  diversos preconceitos em relação a policiais, convivemos com eles mais de um ano e acompanhamos diversos plantões de final de semana. Um dos inspetores que acompanhei foi do Curso de Gestão em Segurança Pública e Justiça Criminal do Nufep, da UFF. Como resultado dessa experiência fiz minha monografia de graduação sobre Práticas Policiais e Direitos Humanos”, conta.

As raízes da desigualdade no cotidiano das DPs

Michael Matos Araújo, aluno de Direito, bolsista da FAPERJ de Iniciação Científica e graduado em História da UFF, sublinhou outra modificação ímpar propiciada pelo programa Delegacia Legal: “O fim da carceragem liberou a polícia e libera os policiais civis do trabalho de cuidar dos presos. Mas tenho notado traços da sociedade do início do século XX, da República Velha que permanecem. Com esse trabalho de campo realizado na Delegacia Legal, unindo bibliografia e trabalho empírico, notei similitudes. Ao fazer a etnografia do atendimento à população nas delegacias nesse trabalho notei modificações ou não-modificações nesses traços, e no relacionamento entre a Delegacia legal e outras instituições como a Defensoria Pública, o Juizado Espacial Criminal (JECrim) e Penitenciárias”, conta o pesquisador fez sua pesquisa de campo em uma delegacia de Niterói.

Segundo Michael o modus operandi mudou. Mas certas práticas de 100 anos atrás continuam as mesmas, e são evidentes: “O tratamento da questão social ou da condição econômica privilegiada, por exemplo. Existe uma diferenciação nesse tratamento. Presenciei uma prisão relacionada ao tráfico de drogas em que não houve registro”, diz ressaltando que o preenchimento da ocorrência hoje é em rede. Diante disso, o antropólogo Lênin Pires apontou outro aspecto importante do universo examinado: “Desde que começamos, estamos perguntando sobre mecanismos de acesso à justiça”.

O coordenador da pesquisa Roberto Kant de Lima dá um diagnóstico sobre isso mostrando que a organização da burocracia judiciária do reino de Portugal é a raiz da questão: Kant explica que no nosso sistema foram criadas a Polícia Militar e a Polícia Civil, quando em qualquer país do mundo, a polícia é uma só, civil. Quando se fala em Polícia Militar, automaticamente se pensa em uma polícia das Forças Armadas, do Exército.

“Aqui no Brasil por uma série de tradições, os governos estaduais tinham uma polícia. No Rio Grande do Sul era a Brigada Militar; em São Paulo e Minas, a Força Pública e esses exércitos estaduais foram transformados em 1964, esta é a PM. As Forças Públicas chegaram a ter mais armamento que o exército, ensina. Em todos os países Exército é reserva da Polícia. Aqui a Polícia é a Reserva do Exército. Essa combinação é esdrúxula. Polícia não pode ser militarizada, Polícia é administrativa e judiciária”, advoga o professor mostrando-nos que talvez a nossa organização judiciária não tenha mudado muito desde o Brasil colonial.

A construção da igualdade e da desigualdade na Lei brasileira

Kant relembra que a polícia do rei era o poder executivo e legislativo para os ‘amigos do rei’: “Era a representação m o poder Real na Colônia, a fiscalização que fazia valer o poder real na Colônia. Esse é um ranço do Antigo Regime”, diz o professor Kant. Assim ele ressalta ainda as circunstâncias próprias da nossa História em que o Brasil colônia em vez de virar uma República, tornou-se um Império e suas conseqüências jurídicas.

Houve um conjunto de fatores históricos que fez com que a nossa ordem jurídica precisasse lidar com circunstâncias bem particulares: “Eram sementes do Direito Real, e não sementes de Direito Civil, com conseqüências sérias à igualdade jurídica que funda a legitimidade da polícia em um Estado Democrático de Direito e serve para construir a ordem baseada na idéia de igualdade. Formalmente todos os diferentes são iguais perante a lei, mas essa polícia tratava escravos de um jeito, e os não-escravos, os nobres de outro. No Brasil Imperial há desigualdade jurídica real”, conclui Kant lembrando que há três complicações nesse cenário.

O antropólogo recorda que no Império havia um Código Penal e três legislações processuais que determinavam ‘como prender as pessoas’: “O Código Civil só vem em 1926. Quando o Brasil vira República a legislação traz a igualdade jurídica, mas incorpora instrumentos como a prisão especial, que são prerrogativas processuais de várias categorias e foros especiais, que recuperam a desigualdade perante a lei. São diferenças impróprias perante a lei. A Justiça está no meio disso para garantir a desigualdade. Então o papel da Polícia fica completamente confuso”, explica o professor Kant.

Por isso Kant ressalta que a polícia, pela lei processual, é obrigada a tratar desigualmente. “Em 2001, treze anos depois da Constituição, puxaram ainda outras modificações para dar a todos os militares o direito à prisão especial. Agora todos os militares têm direito à prisão especial, do reco ao general. Antes, esse privilégio já tinha se estendido, através de diferentes lobbies a sindicalistas, professores, ministros religiosos, etc., todos agora com o privilégio. Está na lei processual, mas inconstitucional, pois contraria a Constituição no que se refere à igualdade de todos perante a lei”, analisa o professor Kant.

A sociedade democrática precisa de polícia

A investigação das questões suscitadas com a pesquisa sobre o programa Delegacia Legal vai além: “O problema da delegacia é que não é só uma repartição do executivo. A delegacia usa e produz elementos e subsídios para o Judiciário, com regras processuais fundadas na desigualdade. É um paradoxo, e não tem prédio de Delegacia Legal que vá resolver esse paradoxo”, analisa o professor Kant. Por isso, a polícia se representa como um poder e não como um serviço púbico. E os policiais se sentem à vontade para bicar –mandar embora, dispensar, no jargão policial – aqueles que os procuram na delegacia, de acordo com meus próprios critérios. Entretanto, isso não desmerece os efeitos positivos da Delegacia Legal.

Kant indica caminhos para o aperfeiçoamento desse programa: “Seria necessário envolver Ministério Púbico, a magistratura e os agentes penitenciários. Teria que repensar a maneira de pôr em prática as leis processuais. Aí reside a dificuldade em que o projeto está colocado – no ambiente ambíguo entre o Judiciário e o Executivo. Por outro lado, ficou claro até essa parte da pesquisa que houve uma série de modificações e interações entre JECrins (Juizado Especial Criminal) e Ministério Público e Delegacias. Mas o recurso para esse nosso projeto não foi liberado em sua totalidade, tivemos que interrompê-lo, não pudemos acompanhar as mudanças”,diz o professor sublinhando as inovações da Delegacia Legal.

Para ele, a introdução desse novo modelo de gestão das delegacias é fator de transformação da relação de poder com lei e com a população: “Não se pode mais agir como se não existisse a informatização. Por um lado o projeto arquitetônico facilitou o acesso da população à única repartição pública sempre disponível para a população recorrer. É um fator que contribui com a construção da cidadania. É uma proposta de mudança, na qual o Estado investiu, faz parte da tentativa de reformar a polícia hoje em curso em vários locais do Brasil, e que visa dar direcionamento diferente a esse modelo de polícia que está esgotado, porque a sociedade democrática precisa de polícia, mas de uma outra polícia. A sociedade ditatorial não precisa de polícia, precisa de exércitos e serviços de informação que reprimem. A sociedade democrática de Direito precisa da polícia para administrar conflitos. É inevitável que a polícia seja quem deve fazer essa mediação”, conclui o professor Kant.

Em novembro de 2006, Roberto Kant de Lima foi contemplado no último edital da FAPERJ como Cientista do Nosso Estado com a pesquisa Tradição Judiciária Inquisitorial, Desigualdade Jurídica e Contraditório em uma Perspectiva Comparada. O antropólogo também foi contemplado no último edital do Pronex, de dezembro de 2006, da FAPERJ, com a proposta de pesquisa Sistemas de justiça criminal e segurança pública, em uma perspectiva comparada: administração de conflitos e construção de verdades.

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