Paul Jürgens
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Marcelo Morales e Nancy Rebouças: defesa do projeto de lei 1.153 enviado ao Congresso |
Boletim da FAPERJ – Qual a importância para a ciência e também para a sociedade de um modo geral da utilização de animais em pesquisas feitas em laboratório?
Marcelo Morales – Devido ao uso de animais, pesquisadores conseguiram conhecer e desenvolver o tratamento para uma série de doenças. Existe um grande número de avanços na pesquisa médica e veterinária que foram obtidos graças a esse uso. Estima-se que a sobrevida da população tenha alcançado um incremento de 30 anos, graças a esses avanços. A título de exemplo, que são muitos, citamos o impacto que a experimentação animal teve com as vacinas, controle do diabetes com a insulina, fármacos que controlam a aterosclerose, o humor, leucemias, hipertensão, transplantes, alívio na dor em todas as suas origens. A prevenção de doenças como a poliomielite e a raiva foram desenvolvidas através do uso de animais. Técnicas de transplante de órgãos, bem como procedimentos de emergência realizados em prontos-socorros também foram desenvolvidos dessa forma. Utilizamos os benefícios do uso de animais em laboratório no nosso dia-a-dia sem perceber. Desde o creme dental pela manhã até substâncias químicas empregadas na limpeza do nosso escritório durante o dia. Somos expostos a uma variedade de produtos cuja segurança foi testada em animais. É importante ressaltar que um grande contingente de doenças que os afetam também foi privilegiada com esse tipo de experimentação, mostrando que a prática, dentro de parâmetros éticos, não visa apenas ao bem-estar social do homem, mas, sobretudo, a manutenção da vida em sua plenitude, o que inclui os animais não humanos com igual reconhecimento. A discussão atual não deve ser em relação à importância do uso do animal, mas sim a importância do seu uso de forma ética, respeitando seu direito de não sofrer estresse desnecessário.
Boletim da FAPERJ – Há cerca de uma década tramita na Câmara dos Deputados projeto de lei que dispõe sobre a criação e uso de animais para atividades de ensino e pesquisa. O projeto propõe a criação do Concea (Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal). Qual seria o impacto de sua aprovação teria na pesquisa brasileira e em sua imagem diante da comunidade internacional?
Marcelo Morales – Esta questão é fundamental. A aprovação do que chamamos Lei Arouca, como uma forma de homenagear o deputado Sérgio Arouca já falecido, é de extrema importância, pois, ao criar o Concea, as instituições de pesquisa terão definidas regulamentações para o uso de animais em pesquisa e em ensino. O Concea deverá ser presidido pelo ministro de Estado da Ciência e Tecnologia e integrado por mais 12 membros, que serão representantes de ministérios ligados à saúde, tecnologia, meio ambiente, agricultura, do Conselho de Reitores das Universidades, além de integrantes de entidades e sociedades científicas. Serão atribuições do Concea "formular e zelar pelo cumprimento das normas relativas à utilização ética de animais com a finalidade de ensino e pesquisa". São atribuições amplas que incluem definições de condições ideais de biotérios de criação e experimentação, os diversos profissionais necessários para isso, criação de comissões de ética no uso de animais em todas as instituições que os utilizam etc., prevendo inclusive a necessidade de revisão contínua desses procedimentos, de modo a manter consonância com as convenções internacionais. A lei também prevê algo inexistente atualmente na ciência que é a punição para instituições e laboratórios que não cumpram seus artigos, impedindo até mesmo o pesquisador infrator de adquirir recursos junto às agências de fomento estatais. O impacto que a aprovação desse projeto de lei teria na pesquisa brasileira seria de imediato a melhoria da qualidade dos animais usados e, conseqüentemente, um aumento da qualidade da ciência produzida. Tudo isso seria possível pela simples observância de normas rígidas para a criação e utilização de animais em experimentação. Para o cumprimento dessas normas, os governos passariam a ser solicitados com mais propriedade pelos dirigentes de instituições, pois a continuidade dos estudos dependerá da existência de pessoal treinado, profissionais comprometidos com o bem-estar dos animais e biotérios bem equipados e adequados. Pesquisa científica é um processo caro que necessita de constante aprimoramento e atenção por parte das agências de fomento. Sem biotérios adequados e bioteristas tecnicamente treinados, a qualidade pode ficar comprometida e o bem-estar dos animais ameaçado. Todavia temos que estar atentos, pois o mesmo Estado deverá promover condições e financiamentos para que essas normas sejam cumpridas. Com essa nova lei, nossa imagem frente à comunidade internacional certamente seria mais positiva e nossos trabalhos teriam maior impacto, pois teremos uma lei específica, semelhante às existentes em países da União Européia e nos Estados Unidos.
Boletim da FAPERJ – A falta de uma regulamentação clara em nível federal pode acabar provocando uma regionalização do debate com a definição de leis no âmbito dos estados? De que forma isso afetaria a pesquisa no país?
Marcelo Morales – A regionalização do debate já vem acontecendo. Focos de radicalização com vistas a impedir o uso de animais de experimentação têm ocorrido no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais, no Rio de Janeiro, etc. Isso prejudica a atividade acadêmica e tira o foco de questões realmente importantes, tais como a qualidade da pesquisa em si, o nível de comprometimento dos pesquisadores com o acompanhamento cuidadoso do real estado do conhecimento em sua área de atuação, o adequado financiamento dos projetos, as condições de trabalho e remuneração dos professores e pesquisadores. A aprovação de uma lei federal sobre o uso de animais em ensino e pesquisa, que defina as normas fundamentais para os procedimentos na área (já considerando inclusive a necessidade de revisão permanente das mesmas, como previsto na Lei Arouca), colocaria o debate sobre a pesquisa na área biológica no Brasil em um patamar mais elevado e para todo território nacional. É evidente que a postura ética e de bem-estar dos animais deva ser reconhecida no Brasil com um todo e não de forma fragmentada. Disposições legais regionais levariam a regras com distinções entre os estados de uma federação, o que seria um caos geral. Portanto, é fundamental que a Lei Arouca seja aprovada de forma que obtenhamos um único padrão de conduta. Não podemos nos dar ao luxo de perder mais tempo!
Boletim da FAPERJ – A resistência da sociedade civil à utilização de animais em testes de laboratório vem aumentando ao longo dos últimos anos, principalmente nos grandes centros de pesquisa da Europa e dos Estados Unidos. Qual é a atual situação nesses países?
Nancy Rebouças – Tanto nos Estados Unidos como na Europa existem entidades que se opõem vigorosamente à utilização de animais em experimentação, seja para ensino ou pesquisa. Ao lado de debates relevantes para o esclarecimento da sociedade e dos próprios pesquisadores sobre questões éticas referentes a esse uso, surgem também manifestações agressivas que não contribuem para o aprimoramento da discussão, mas sim para a maior polarização entre grupos a favor e contra. Algumas atitudes radicais vêm sendo consideradas, muitas vezes, como atos de agressão ou terroristas, e seus autores vêm respondendo a processos e alguns deles já foram condenados. Em relação à legislação, estes países têm leis específicas que regulam o uso de animais de laboratório. O projeto de lei 1.153 que a comunidade científica tenta aprovar no Brasil foi criado baseando-se na legislação existente nestes países.
Boletim da FAPERJ – As sociedades de defesa dos direitos dos animais dizem que há modelos/protótipos que podem substituir de forma satisfatória os animais em alguns testes e principalmente na parte de ensino. Em que áreas e onde isso já é uma realidade?
Nancy Rebouças – Sem dúvida, na área de ensino existem possibilidades muito interessantes de utilização de modelos teóricos do sistema biológico, que permitem modificações de certos parâmetros e observações de efeitos no sistema, possibilitando discussões ricas que contribuem significativamente para o envolvimento do aluno com o seu próprio aprendizado. Na área de pesquisa, existem laboratórios no Brasil e no mundo que se dedicam ao desenvolvimento de modelos virtuais cada vez mais complexos, que auxiliam muito no entendimento do sistema biológico. Denominamos isso genericamente de Biologia Computacional. Mas essa é uma parte pequena da atividade na área da pesquisa médica e biológica. Pequena não no sentido de que ao se desenvolver e tornar grande ela eliminará a necessidade do uso de animais de experimentação. Esse tipo de abordagem pode responder a alguns tipos de questões, independentemente do número de pesquisadores que sejam colocados a trabalhar com ela. O sistema biológico precisa ser investigado em si mesmo, e não apenas ser modelado. Para elaborar o modelo, já é preciso conhecer algo. Para testar o modelo, é preciso voltar ao animal e testar o fenômeno em sua realidade. Para investigar o ser vivo, temos que interferir com ele, produzindo animais knockout, tratando-os com determinadas drogas ou com determinadas dietas, por exemplo, e posteriormente analisar os efeitos dessas interferências. A biologia computacional auxilia na elaboração de hipóteses, mas não testa a sua veracidade. O mesmo acontece com experimentos realizados em células cultivadas em cultura, que têm grande importância como ferramenta na resposta de perguntas biológicas. Todavia, seu uso é limitado à resposta de algumas perguntas específicas, não permitindo a exclusão dos modelos animais. Devemos estar conscientes de que, sempre que possível, técnicas que substituam a experimentação com animais devem ser utilizadas e se houver a necessidade da utilização de animais, devemos reduzir sempre a quantidade para o número mínimo possível. Na área de ensino, esse uso também é importante para evidenciar a realidade do sistema, como ainda são importantes para a formação qualificada de biólogos, biomédicos, médicos etc. O que devemos observar é se a prática é realizada com ética e com a aprovação de uma comissão de especialistas na área.
Boletim da FAPERJ – Descobertas importantes, como a da insulina, do tratamento contra a raiva, de antibióticos como a penicilina, de técnicas de cirurgia cardíaca, de transplante de órgãos, entre outros, se deram em grande parte graças à utilização de animais nas pesquisas. O que significaria para o setor de pesquisa do país o banimento total das experiências com animais em laboratório, caso isso viesse a acontecer?
Nancy Rebouças – Pelo já comentado acima, o avanço do conhecimento sobre o sistema biológico em qualquer nível, seja para entendimento da saúde ou da doença, humana ou de qualquer espécie, não pode se realizar sem o uso de animais no processo de investigação. O banimento dessas experiências no país seria um ato irresponsável, que mutilaria uma área importante de conhecimento, essencial para o bem-estar e convivência harmoniosa dos seres vivos de um modo geral. Temos que encarar com responsabilidade ética e intelectual nossa tarefa de garantir a adequada atividade de nossos cientistas e a formação bem fundamentada de nossos estudantes, os futuros profissionais. É preciso estabelecer alguns critérios para essa discussão. O primeiro é que jamais os testes deixarão de ser realizados em animais, pois em última instância eles precisarão ser realizados no homem, que também é um animal. Assim, caso observemos o banimento total do uso de animais em testes, teríamos que, em algum momento, fazê-lo na população humana. Quais seriam os riscos? Efeitos adversos não poderiam ser previstos ou mesmo controlados. Do ponto de vista social, o banimento total dessas experiências levaria à perda na qualidade científica e tecnológica de um país e o colocaria numa posição de dependência e de perda de soberania. Um aspecto de extrema relevância para a sociedade é que grande contingente de descobertas de cientistas contemplados com o prêmio Nobel na área biomédica foi obtido utilizando desde moscas até primatas.
Boletim da FAPERJ – A questão dos direitos dos animais e a sua utilização em pesquisas vem sendo discutida desde o século XVII. O livro "Animal Liberation", de Peter Singer, publicado em 1975, causou uma polêmica mundial, principalmente com os relatos das condições a que os animais eram submetidos pela indústria de cosméticos e pela indústria de produção de alimentos, o que provocou reações até violentas durante os anos 1980. Como anda o debate em torno da ética e das normas para a prática didático-científica da vivissecção de animais?
Marcelo Morales – O debate continua, algumas vezes acirrado. O livro do filósofo Peter Singer descortinou uma discussão relevante e permite reflexão sobre o direito dos animais e seu bem-estar. Trata ainda do porquê de sua escolha como sujeitos da experimentação científica. Um dos grandes méritos do pensamento de Peter Singer foi nos ofertar base para a reflexão do posicionamento do homem frente aos demais animais e discutir a relevância de aulas práticas e de técnicas de vivissecção. As comissões de ética foram criadas em função deste questionamento e tornaram-se o principal local para a discussão da relevância das técnicas utilizadas. Dessa discussão, aprimorou-se o pensamento da importância de tais procedimentos e hoje somos detentores de razões que pairam para ambos os lados. Tanto no sentido de usar aulas expositivas e assim evitar o uso de animais, como também sermos vigorosamente a favor de aulas práticas, por entender que o processo de conhecimento e de obtenção do saber necessita de registro cognitivo que aulas demonstrativas não podem oferecer. O termo encerra uma imagem e sensação irreal. A de que o cientista utiliza animais sem que eles sejam submetidos a um preparo prévio que envolva sedação e anestesia. O cientista é um ser ético, que manipula animais de experimentação para fins didáticos e científicos sob estrito rigor e somente após avaliação de uma comissão de ética.
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