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Publicado em: 11/12/2008
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Quando o corpo não é prisão


Vilma Homero

   Divulgação

      
 Livro sobre a pesquisa de Joana de V.
 Novaes deve sair no início de 2009
    
Ditadura do corpo? Império da magreza? Que nada... Se para as mulheres de classe média e classe média alta, vale qualquer sacrifício para manter um corpo magro e sarado, para um sem-número de moças de comunidades populares, mais vale ser chamada de "gostosa", esbanjar a fartura de carnes de uma verdadeira "mulher-churrasco". Em seu estudo "Corpo: Apenas uma questão de aparência? Sociabilidade e usos do corpo em camadas populares", a psicanalista Joana de Vilhena Novaes confirmou o que já suspeitava. No universo estético em que o ideal a ser seguido é o das popozudas, das mulheres-melancia e de outros ídolos curvilíneos do funk, sobram decotes, bermudas curtinhas, tops e minissaias, numa exuberante exibição do corpo, mesmo quando ele apresenta sinais evidentes de obesidade ou sobrepeso. "Enquanto as mulheres das classes mais favorecidas procuram esconder os indesejados quilos a mais e reclamam da acintosa diminuição dos manequins, as mulheres das classes populares parecem, com muito jogo de cintura, encontrar uma apreciação distinta deste corpo e outras possibilidades de indumentária", diz a psicanalista.

Joana também é coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza, serviço oferecido pela vice-reitoria comunitária da PUC-Rio, que atende pacientes de baixa renda com transtornos alimentares. A iniciativa foi selecionada como um dos serviços acadêmicos de destaque, no cenário brasileiro, pelo Prêmio Saúde organizado pela Editora Abril. Em 2000, Joana fez sua dissertação de mestrado, intitulada Perdidas no espelho, com mulheres das classes média e alta da Zona Sul carioca, freqüentadoras de academias de ginástica. Em 2004, fez a de doutorado, focando em algumas práticas corporais que mulheres cariocas, de diferentes faixas etárias e extratos sociais, lançam mão para fugir da feiúra. No estudo, a pesquisadora entrevistou 300 mulheres em clínicas particulares de cirurgia plástica e ambulatórios de hospitais públicos, e obesas que haviam se submetido à cirurgia bariátrica. A tese, intitulada O intolerável peso da feiúra: sobre as mulheres e seus corpos, deu origem ao livro homônimo, publicado pela Editora PUC/Garamond em 2006.

A pesquisa sobre o culto ao corpo na sociedade de consumo – que a esta altura já somava 10 anos – deu frutos, e a autora decidiu dar continuidade ao projeto, abordando com maior profundidade o tema nas camadas populares. Com apoio da FAPERJ, Joana pôde dar início a sua pesquisa de pós-doutoramento, um estudo de campo contrastivo, cujo objetivo era comparar os discursos em relação ao corpo tanto nas camadas mais abastadas da sociedade carioca quanto entre as mulheres menos favorecidas dessa população.

Para isso, ela literalmente subiu o morro. Com a ajuda bem-humorada de Ellis (os nomes são fictícios, para resguardar a identidade dos entrevistados pela pesquisa), moradora de uma das comunidades visitadas, que lhe facilitou o acesso e a aproximação com as entrevistadas, Joana conversou com 35 mulheres da Rocinha, Parque da Cidade e Rio das Pedras, comunidades de baixa renda da Zona Sul e Oeste cariocas. O projeto renderá novo livro, a ser lançado no início de 2009.

"Nesse estudo, pude perceber a grande diferença no modo com que mulheres de classe média e as de classes populares se relacionam com o próprio corpo." Segundo a autora, pelo que manifestam em suas falas, enquanto as primeiras se mostram aprisionadas pelo desejo de exibir um corpo magro e em conformidade com os atuais padrões estéticos, sem usufruir dele livremente, as segundas não cansam de exibir a anatomia. "Embora não estejam imunes e até assimilem a estética da magreza, em vez de se manter aprisionadas numa relação de desprazer e vergonha com o próprio corpo, também dão ouvidos a outras influências igualmente fortes: uma delas é a estética popular, que contempla uma silhueta mais cheio de curvas e mais próxima da realidade. "Estar acima do peso não priva essas mulheres da sociabilidade, de ter uma vida amorosa ou de exercer sua sexualidade." E, principalmente, encontra eco nas vozes masculinas.

   Divulgação

       
         Mesmo preocupadas com a forma física, mulheres
       das classes populares convivem melhor com o corpo
Joana percebeu que, nessas camadas sociais, o discurso também é revelador. Como a fala da cozinheira Zélia, que não teve pudores em afirmar: "Quem gosta de osso é rico, pobre gosta é de carne para encher a cama e fartura para encher a mesa." O comentário bem-humorado confirma que a preocupação em esconder a gordura é bem menor. Mesmo se reconhecendo acima do peso, as mulheres das classes populares querem ser notadas e desejadas. "Sou que nem a Preta Gil, sou a mulher-churrasco, aqui tem carne pra matar a fome de todo mundo. Quando vou ao baile, passo o rodo geral", comenta Laureanne, 23 anos, estudante de enfermagem e recepcionista de uma clínica odontológica. Comentário endossado por Gracyenne, 25 anos: "Deus me livre, no dia que passar na rua e ninguém olhar nem me chamar de gostosa. Aí é que o negócio não vai prestar... Enquanto estão olhando, tá bom."

"A fala dessas mulheres mostra que elas conseguem se colocar mais facilmente no lugar de objeto de desejo. Mesmo sabendo-se acima do peso, isso de forma alguma lhes restringe o uso do corpo ou de sua sexualidade. Mas, em vez de esconder, seu corpo é para ser exibido, sem receios ou inibições, é para ser usufruído. Ou como elas dizem com todas as letras: ‘Estou gorda, mas o nego lá de casa não reclama e me procura sempre’", explica a psicanalista. "Isso certamente aponta para uma forma bastante distinta de lidar com a própria sexualidade, o que, como sabemos, pouco tem a ver com o corpo em si", continua a pesquisadora. Esta talvez seja a maior diferença a ser destacada entre os dois universos. "Nas classes mais abastadas, prevalece uma certa discrição e timidez quanto ao desnudamento e quanto ao trato com a própria sexualidade – freqüentemente reprimida quando o corpo não está em consonância com a imagem ideal. Ou seja, a relação com o corpo, e sobretudo com a sexualidade, é bastante persecutória", explica Joana.

Nas comunidades, ao contrário, as mulheres se mantêm mais satisfeitas porque não têm uma relação de idealização com o padrão da moda. "O que é um paradoxo, já que também é comum elas freqüentarem as academias, usarem chás emagrecedores e emplastros caseiros para combater a celulite. Apesar da nítida preocupação em cuidar da forma física, percebi que não há um sofrimento tão agudo, que elas parecem conviver mais naturalmente com seus defeitos corporais", fala. Para a psicanalista, não se trata necessariamente de auto-estima mais elevada, mas de valores distintos. "O olhar que vai validar este corpo também será distinto. O sucesso das popozudas não nos deixa mentir", explica.

À medida que se sobe na escala social, no entanto, os excessos do corpo deixam de ser tolerados. Se nas classes altas, o que está em pauta é privação e disciplina em não comer, nas camadas mais pobres, outros valores associados ao corpo e à comida, como prosperidade e status, interferem diretamente na forma como ele é visto e avaliado pelos membros do grupo. "É preciso não esquecer que a fome, como já dizia Josué de Castro, é um tema proibido, e as lembranças de privação ainda são fortes historicamente. Há, portanto, toda uma gama de valores atribuídos à comida, um imaginário distinto que associa gordura à fartura, à prosperidade, ao desejo", fala a psicanalista. Ou, como diz a cozinheira Zélia: "Se tiver magrinho a vizinhança começa logo a comentar que estamos passando necessidade."

Para Joana, a relação dessas mulheres de classes sociais diferentes com a comida é bastante diversa, e o contraste é revelador: "A relação entre comer e cultura é absolutamente íntima. Entre as integrantes das classes média e média alta, há um desconforto, um pudor em dizer que o corpo sofre para se adequar aos padrões estéticos vigentes e agradar a elas mesmas. Elas se privam, fazendo do corpo uma prisão, mas nas comunidades, o papo é outro: "Produto light e diet é coisa pra madame. Se você olhar a cesta básica, só tem óleo, arroz, feijão, farinha, macarrão, pão. Depois, a gente vai ao posto e o médico diz que tem que comer frutas, verdura, queijo branco. Eu pergunto logo: o senhor vai comprar? Lá em casa estamos aceitando doações! (Jacyra, cabeleireira, 48 anos)."

"É uma dieta farta em carboidratos e pobre em verduras e frutas, mas também mais acessível", fala Joana. O que leva a outro paradoxo interessante: essa população não está imune à incidência de distúrbios alimentares, que também é cada vez maior nessas camadas da população. "Embora as entrevistadas tenham um discurso crítico e estejam bem informadas sobre os parâmetros de saúde, para elas, isso não significa necessariamente magreza. Gordura e magreza traduzem valores bastantes distintos em relação à comida e em realidades e formas bem diferentes de lidar e usar o próprio corpo", conclui Joana.

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