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Publicado em: 26/05/2011
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Estudo investiga a vida nos cárceres secretos da Inquisição portuguesa


Débora Motta

 

                                            Reprodução
  

   Com o lema "Misericórdia e Justiça",
   a Inquisição perseguia os "hereges"

Ao longo da história, muitos embates foram travados em nome da fé. As perseguições promovidas pela Inquisição portuguesa são um desses capítulos turbulentos. Um estudo da Jovem Cientista do Nosso Estado da FAPERJ, Daniela Buono Calainho, historiadora e professora da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), analisa aspectos pouco conhecidos do cotidiano dos prisioneiros nos cárceres do Tribunal do Santo Ofício português, entre os séculos XVII e meados do XVIII. Este período é considerado o ápice das perseguições inquisitoriais em Portugal e no resto do Império português, inclusive no Brasil, à época ainda colônia.

 

Nessa época, o Tribunal da Inquisição em Portugal tinha sede em três cidades: Lisboa, Évora e Coimbra. “Todos os processos dos réus oriundos do Brasil eram remetidos para o tribunal lisboeta, o maior deles”, explica a professora, lembrando que a primeira visita da Inquisição ao Brasil ocorreu em 1591, na Bahia. Para repreender as heresias – transgressões aos dogmas da Igreja católica –, instituiu-se na colônia uma figura permanente a serviço da Inquisição: a do familiar. Considerado um cargo de grande prestígio da Inquisição, o familiar era responsável por recolher denúncias sobre os “hereges”, prender os suspeitos e acompanhar os presos nos autos de fé, ocasião em que se lia publicamente as sentenças dos réus, para então queimar aqueles que eram considerados "relaxados ao braço secular".

 

Uma das maiores heresias aos olhos da Inquisição, que atuou no contexto da Contra-Reforma – movimento criado para fortalecer a fé católica em resposta ao avanço do protestantismo –, era a prática do judaísmo pelos cristãos-novos. "Os hereges mais perseguidos pela Inquisição foram os cristãos-novos, ou seja, os judeus que, convertidos ao cristianismo, eram suspeitos de continuar crendo e praticando sua religião original", explica Daniela Calainho. Entre outros "hereges" perseguidos frequentemente estavam os bígamos, que em alguns casos deixavam as mulheres em Portugal e se casavam pela segunda vez, ao chegar a um novo lugar do Império português; os sodomitas, isto é, os homossexuais; os feiticeiros, ou indivíduos que se dedicavam ao exercício da magia; os blasfemadores, aqueles que desacatavam os dogmas católicos pela palavra; os mouriscos, muçulmanos convertidos ao cristianismo que insistiam em professar a antiga fé; e os protestantes.

 

Condições degradantes nos cárceres de Lisboa

 

 Reprodução
        

 Lista dos condenados aos autos de fé:
 conduta pessoal era monitorada de perto 


O estudo da historiadora Daniela Calainho tem como enfoque os bastidores dos cárceres da Inquisição de Lisboa, localizados no mesmo prédio do Tribunal do Santo Ofício da capital. Em um minucioso levantamento de dados, realizado ao longo de algumas viagens à capital lusitana, desde 2009, a pesquisadora investigou detalhes como de que maneira os réus se comunicavam e como eram as reais condições de vida dos prisioneiros. “Analisamos aspectos como os níveis de comunicabilidade e de sociabilidade possíveis dentro do espaço do cárcere, além do grau de comprometimento físico e emocional dos presos condenados a diversas penas inquisitoriais”, resume.

 

De acordo com a historiadora, 95% das informações que serviram como base para a pesquisa foram encontradas no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. Entre os documentos, destacam-se os Regimentos inquisitoriais de 1613, 1640 e 1774, que forneceram pistas sobre como o Santo Ofício organizava seu sistema prisional, os funcionários envolvidos e as relações do tribunal com os presos; os Livros do alcaide dos cárceres, contendo dados pessoais dos presos, locais específicos onde estavam, pedidos variados, petições e ocorrências; os Processos dos diferentes delitos do foro inquisitorial, para descrever o cotidiano dos cárceres, as condições físicas dos detentos e suas relações com o poder inquisitorial; e as Visitas de inspeção ao Tribunal de Lisboa em 1643, 1649 e 1658, ocasião em que se averiguava a conduta moral e ética dos funcionários e sua relação com os presos, além das condições dos cárceres e dos prédios onde funcionava o tribunal.       

 

Para além da complexa burocracia que regia os procedimentos da Inquisição, os documentos revelam as condições de vida nada favoráveis dos calabouços. Lúgubres, insalubres, de higiene precária, escuros e com muitos presos em cada cela. Os réus eram presos enquanto ainda aguardavam o julgamento dos processos, que geralmente transcorriam durante anos a fio, em segredo, obrigando-os a aguardar a decisão final dos inquisidores em meio a inúmeras sessões de inquirições e tortura. “Dificilmente alguém era absolvido. Depois de longos anos de prisão, eles geralmente eram condenados a várias penas, entre elas o degredo ou a temida fogueira”, afirma a pesquisadora.

 

Aliás, a ideia do segredo dos processos era muito cara ao funcionamento da Inquisição ibérica. “Os próprios calabouços da Inquisição eram chamados de ‘cárceres do secreto’”, explica Daniela Calainho. Ela conta que os prisioneiros não podiam receber visitas nem contar nada do que se passava lá dentro. Além disso, mesmo sem saber o porquê, eram presos e obrigados a confessar o motivo pelo qual imaginavam ter sido presos. “O ato de confessar as heresias era valorizado”, completa a historiadora, acrescentando que outra questão comum que afetava a sociabilidade dos réus nos calabouços eram as denúncias entre os próprios colegas de cela, devido a questões como a prática do judaísmo.

 

A atuação dos médicos e dos barbeiros nos “cárceres do secreto” também foi considerada pela pesquisadora. Estes profissionais eram responsáveis pelo cuidado dos réus e por atestados deliberativos de comutação das penas, isto é, pela substituição de uma sanção por outra menos grave. “Médicos e barbeiros deliberavam sobre as condições dos réus e se responsabilizavam sobre sua integridade física, de modo que cumprissem suas penas e saíssem de lá vivos. Sua presença também era imprescindível nas sessões de tormento, para avaliar a capacidade dos réus de suportá-las”, diz a historiadora.

 

Daniela Buono Calainho é autora de dois livros sobre a Inquisição: Agentes da fé: Familiares da Inquisição portuguesa no Brasil colonial, de 2006, da editora Edusc, de São Paulo; e Metrópole das mandingas: Religiosidade africana e Inquisição portuguesa no antigo regime, lançado pela editora Garamond, em 2008, com apoio do Programa de Auxílio à Editoração (APQ3), da FAPERJ. Para ela, estudar a vida nos “cárceres do secreto” pode ajudar a esclarecer uma parte ainda obscura da história. “O estudo dos cárceres inquisitoriais pode nos levar à compreensão da construção da autoridade e dominação da Inquisição sobre a própria sociedade, por meio da pedagogia do medo”, conclui.

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