Mario Nicoll
Pinturas de Jean-Baptiste Debrét (1768-1848)
“O Império é o café e o café é o Vale”, dizia o povo no século 19. E o café era o escravo. Tanto do ponto de vista econômico quanto do ponto de vista político e cultural, o Vale do Paraíba, na região Sul Fluminense, e a cidade de Vassouras formavam o maior pólo cafeeiro do país. Apesar de ser o núcleo urbano mais importante do Vale, somente agora Vassouras é o foco geográfico específico de um amplo estudo sobre escravidão.
Contemplada pelo Programa Primeiros Projetos, a pesquisa Escravidão, Liberdade e Direito em Vassouras no século 19 resultará num aprofundado desenho da vida da população escrava em Vassouras entre 1840 e 1888. A região, que concentrava grandes fazendas, fortunas e boa parte da camada superior da sociedade imperial, ganhará assim um verdadeiro retrato da numerosa população escrava que sustentava tudo isso.
A região foi objeto de valioso e clássico estudo de 1957, realizado pelo brasilianista Stanley Stein. O estudo abrangia principalmente o período de
Em nova abordagem, o estudo coordenado por Ricardo Salles, do Departamento de Ciências Humanas da Faculdade de Formação de Professores da Uerj, está traçando um perfil sócio-demográfico de natureza quantitativa. O levantamento investigará as nações africanas de origem – definidas através das práticas correntes do tráfico internacional de escravos – os nomes cristãos adotados ou impostos, a composição sexual, doenças, ofícios, perfil etário e muito mais.
Ao longo dos anos, os escravos construíram redes de solidariedade e sociabilidade que, de acordo com as circunstâncias das diferentes conjunturas históricas, abriram espaços, garantiram direitos costumeiros, criaram melhores condições de vida e, para alguns, trouxeram a liberdade. “Os cativos de modo algum viviam em situação de anomia social e completa submissão à vontade de seus senhores, como considerado pela historiografia anterior”, afirma Ricardo.
Ao mesmo tempo em que mantinham uma infinidade de laços internos, os escravos se relacionavam com outros grupos sociais livres, além daqueles com quem imediatamente conviviam, como seus senhores e feitores. “Nossa investigação está no centro desta rede de relações. Estamos identificando os mecanismos e estratégias de constituição, ampliação e diversificação de redes de sociabilidade e a ampliação de espaços de direitos dessa população”, explicou o pesquisador.
A análise dos padrões de evasão de cativos na região está sendo feita com base em anúncios de jornais sobre escravos fugidos. A ação regulatória do Estado e as atitudes de senhores nas disputas pela obtenção da alforria no período compreendido entre a promulgação da lei de 4 de setembro de 1850, que extinguiu o tráfico internacional de escravos, e a Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871 também estão sendo exploradas.
Primeiras evidências e conclusões
Um dos resultados já obtidos pela pesquisa diz respeito aos impactos que essas leis tiveram sobre a região. Sempre foi fato estabelecido pela história que a população escrava no Brasil não crescia vegetativamente e que a escravidão não conseguiria se manter a partir do fim do tráfico internacional de escravos em 1850. O estudo de Ricardo, no entanto, descobriu que a população escrava do Vale do Paraíba se reproduzia naturalmente e que, caso a Lei do Ventre Livre não tivesse sido regulamentada essa população se manteria. “Com as condições sociais e demográficas da década de
Na análise da correspondência oficial de autoridades provinciais na década de 1840 estão sendo encontradas abundantes evidências do enorme temor da eclosão de um levante geral de escravos africanos, inclusive com apoio de abolicionistas ingleses. A descoberta lança luz sobre o contexto político da decisão do governo imperial de abolir efetivamente o tráfico internacional de cativos em 1850. Mais ainda quando o recenseamento parcial realizado naquele ano indica que em alguns municípios da região, como Valença, por exemplo, a proporção de escravos na população total atingia 70%.
Outra conclusão parcial do estudo é a de que, a partir do início da década de 1860, o processo de envelhecimento da população escrava em Vassouras pode ter sido reflexo da melhoria nas condições de vida da população cativa e da alteração de seu padrão demográfico de reprodução. A partir de 1867, há uma ligeira tendência de crescimento da faixa de jovens e adultos entre 15 e 29 anos. Há ainda um aumento no número de casamentos a partir de 1870 e no número de filhos ao longo de todo período. Há uma aceleração perceptível desse ritmo a partir de 1858.
Esta nova dinâmica seria marcada por alterações significativas nas tendências demográficas e sociais atuantes no seio da comunidade escrava, tais como: da maior proporção de escravos crioulos (nascidos no Brasil) em relação aos africanos, o maior equilíbrio entre os sexos, uma pirâmide etária também mais equilibrada, o aumento no número de famílias e filhos. Todas estas tendências indicam possivelmente – e contrariamente ao que acreditava a historiografia – que, a partir de 1860, se dá o início de um processo de crescimento vegetativo da população escrava em Vassouras.
Ainda de acordo com a pesquisa, há um aumento da população em idade produtiva – entre 15 e 40 anos de idade – na região a partir da década de 1870. Dados oficiais do período entre 1873 e 1883 indicam uma tendência à diminuição na incidência de alforrias legais: elas ocorrem a uma taxa anual de 0,21%, três vezes inferior à média nacional de 0,6%.
Fase preliminar
Essas primeiras conclusões são fruto da primeira etapa do estudo que já realizou a revisão e a complementação do banco de dados que havia sido montado anteriormente até o ano de 1871, tendo como fonte o material disponível no Centro de Documentação Histórica de Vassouras (CDH) em termos de inventários post-mortem. A meta é cobrir o período entre 1821 e 1888.
Além da correção de eventuais erros cometidos na montagem inicial, foram introduzidas novas informações contendo nomes e naturalidades dos cativos neste período. O trabalho permitirá a determinação com razoável margem de precisão da origem dos escravos de Vassouras, tanto daqueles que vieram da África quanto dos provenientes de outras províncias do Império. O registro dos nomes dos cativos possibilitará, em conjunto com a análise de outras fontes, a investigação de trajetórias de vida individuais.
Ricardo desenvolve o estudo em conjunto com outros pesquisadores: Claudia Regina Andrade dos Santos, da Universidade Cândido Mendes (Ucam) e Universidade Severino Sombra (USS), de Vassouras; Keila Grinberg, da Uni-Rio e Ucam; Magno Fonseca Borges, da USS; e Marcelo Bittencourt, da UFF. Junto com alunos bolsistas, a equipe já incorporou ao banco de dados informações como registros de casamentos, alforrias, processos de reescravização, batismos e óbitos.
As informações contidas nos Livros de Assentamento de “bitos permitirão a investigação sobre padrões de óbito que levarão em conta naturalidade, sexo, idade etc. Também já foram digitadas informações do Censo de 1872 referentes a Vassouras e municípios selecionados no Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo.
Projeção preliminar indica que o levantamento de dados sobre a população escrava nos inventários do CDH pode abranger entre 25 e 30 mil indivíduos para um período de 67 anos, acompanhando praticamente na íntegra o ciclo escravista do café na região. A pesquisa possibilitará um tratamento quantitativo sistemático de uma longa série histórica num recorte espacial definido. O banco de dados resultante de tal empreendimento, contendo informações que poderão ser tratadas de diferentes maneiras, será de extrema relevância para futuros estudos sobre a população escrava na região de Vassouras.
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